Funk na escola: precisamos sair da caixa?
- Por Marcio Santos
- 18 de fev. de 2018
- 8 min de leitura

Diante da polêmica criada a partir de uma atividade para crianças do Centro Educacional Infantil Professora Gislene Costa, localizado no município de Ribeirópolis, SE, precisamos ampliar as discussões e nos questionar... Afinal, "Funk na escola: precisamos sair da caixa?".
Geralmente, quando se pensa em Funk, automaticamente associa-se o estilo musical à sexualização, machismo e apologia ao crime, sendo, então, para muitos, impensável sua inserção no ambiente escolar, principalmente, para crianças, pelo "temor de afetar em sua formação", ou como muitos dizem: "por não contribuir em nada na educação de crianças e jovens". Então, isso procede? Para melhor compreensão, é necessário, primeiramente, conhecer o que, na verdade, é o Funk, e seu valor histórico, para depois adentramos na possibilidade ou não de sua utilização no ambiente escolar.

Diferentemente do que achamos, a história desse ritmo musical começou bem antes da versão carioca ficar popular no brasil nos anos 80. Como mostra Pedro Henrique Tavares, colunista do blogue Mundo estranho, o pianista norte-americano Horace Silver, considerado o precursor do Funk, já na década de 1950, falava no termo “Funky Style” ao juntar o Jazz e a Soul Music para criar um estilo mais dançante. Nos anos 60, músicos como Miles Davis e a banda Kool & the Gang faziam o funk propriamente dito, uma mistura de Soul, Jazz e Rhythm and Blues (R&B).
Contudo, foi James Brown que colocou gênero no mapa internacional. Ele, que já era um dos grandes intérpretes do soul, adotou a ideia de Silver e acrescentou mais um toque: o swing, um estilo de dança que surgiu no Harlem, em Nova York.

A soma desses estilos musicais moldaram a época, sendo difundido entre crianças, jovens e adultos, apesar da resistência da elite cultural branca. Sua maior aceitação se deu a partir da inserção de características do Rhythm and Blues no Rock, pelas figuras de Chuck Berry e Little Richard, mas, principalmente, pela representatividade midiática branca e carisma de Elvis Presley, o dito “Rei do rock n’ roll”.
Através de Gerson Rodrigues Côrtes, o Gerson King Combo, o funk chegou ao Brasil, por volta de 1969, com clássicos brasileiros executados com a batida dos EUA. No mesmo período, ícones da então intitulada Black Music Brasileira como Tim Maia e Tony Tornado com seus cabelos black power e gingados sensuais, começaram a cantar o ritmo que se tornou um expoente da cultura afro no país.

Nos anos 70, com o aparecimento das primeiras produtoras do Rio de Janeiro (Soul Grand Prix e Furacão 2000) e as versões pioneiras do baile funk, este, definitivamente, cravou raízes no Brasil.
Os bailes ganharam força nos anos 80 e surgimento e crescimento dos DJs fez brotar o que chamamos hoje de o funk carioca, pois, até então, no Brasil, tocavam-se clássicos remixados, surgindo, posteriormente, os Mc's.
Paralelo a todos estes acontecimentos na esfera artística, a sociedade carioca, assim como tantas outras no país, enfrentava de frente a histórica grande crise social, a violência e pobreza, e embate entre as classes sociais, e até, infelizmente, quesitos da dominância de gênero, machismo, passando a adotar, pelo menos aqueles que faziam parte da periferia, o Funk como instrumento de revolta e exposição, um grito sobre a realidade das favelas, que tinham (e ainda tem) o Estado paralelo mais próximo do atendimento de suas respectivas demandas, já que o Estado Legal não tinha o devido diálogo e marginalizavam as comunidades.

Após a era do Bonde do Tigrão, Tati Quebra Barraco, Claudinho e Buchecha, e, hoje, com o chamado Funk ostentação, de Mr. Catra, MC Guimê, MC Livinho, MC Gui, Anitta e Ludmilla, e tantos outros, a classe média e elite começou a "invadir" as periferias cariocas, levando o Funk para seus respectivos ambientes, sendo mais difundido nas mídias, e, assim, os bailes continuaram crescendo, adquirindo um perfil mais eclético e com várias influências sociais. Contudo, ainda sofrendo o preconceito de grande parte da sociedade brasileira, que adotou o Samba (que também se originou das periferias), após décadas de preconceito e com posterior a chancela das elites cultural e político-econômica, como marca principal de sua cultura. Ou seja, exposta sua história, é fácil compreender que a não aceitação do Funk enquanto cultura, e seu valor histórico, está algo a mais do que questões morais? Não?! Você duvida?!

Quando o Funk é negado enquanto cultura, renega-se não apenas o modo de expressão artística de parte da sociedade, mas, sim, a própria existência desta fatia, que por sinal é significativa, pois é a base maior da pirâmide, a própria periferia, e classe média, e que também influencia, de certa forma, as demais.
Mas isso, essa visão, não é novidade. É algo que, por exemplo, índios sofreram com a chegada dos portugueses ou os africanos durante a escravidão, e tiveram muito de suas respectivas culturas negadas pelas classes dominantes, e até hoje temos reflexo disso. Ex: as religiões afrobrasileiras ou indígenas (Xamanismo) não serem consideradas legalmente como religiões, e sim ceitas. E com isso, além do fomento do preconceito, não recebendo os mesmos benefícios que as Cristãs.
Logo, por trás de questões morais estão o preconceito com a cultura periférica, a própria incompreensão do que é cultura, já que muitos ainda enxergam como cultura apenas a tradicional, a conservadora, a aprovada e convencionada pelas elites. Mas ela está muito além disso. E tal visão conservadora mostra-se aquém do que diz a sociedade acadêmica sobre cultura, como também sobre metodologias no processo ensino-aprendizagem.

Você ainda duvida disso?! Devido as questões morais não devemos considerar como cultura e, muito menos, adotar tal estilo musical como ferramenta no ambiente escolar, principalmente com crianças?
Digo que, observando-se as particularidades de cada faixa etária e/ou da forma como foi e é trabalhado, temos o Funk certo. Dependendo da letra e coreografia do Funk, ele pode e deve sim ser uma ferramenta a ser utilizada na Educação de Crianças. Ou seja, dependendo da linguagem utilizada. Que no caso do que o Centro Educacional Infantil Professora Gislene Costa, a princípio, pelo vídeo, apresentou, não foi inapropriada para idade.

Comparativamente, por exemplo, Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano, Alcione, Martinho da Vila, Aviões do Forró, Saia Rodada, Wesley Safadão e Pink (em Stupid Girls), e até, por sinal, Led Zeppelin e outras bandas e artistas internacionais, como Maroon 5 (na sua música Animals), descreveram muitas vezes mulheres submissas, como objetos, desvalorizadas ou rotuladas com esteriótipos machistas. Raimundos, Genivaldo Lacerda, Ultraje a Rigor, dentre tantos, foram ainda mais pesados na hora de falar da mulher. E com tudo isso não houve, não há, por parte da sociedade, o clamor de revolta. Sem contar, e não querendo entrar muito nesse mérito, o Heavy Metal, que tem em muitas das composições e personagens, além do machismo, a xenofobia, homofobia e intolerância religiosa.

Então, a questão é o estilo ser imoral ou a carga de preconceito depositada numa cultura periférica? Com certeza, o preconceito. A verdade é que além de ajudar no fortalecimento da própria identidade e no reconhecimento social das comunidades periféricas, e respeito das demais para com elas, facilitando as trocas de valores culturais e mudando a visão das próximas gerações, o Funk pode e serve como ferramenta no processo ensino-aprendizagem de Crianças nas escolas em várias disciplinas como Educação Física, Geografia, História e Artes, ou mesmo colocá-la como temática transversal entre todas disciplinas, trabalhando aspectos da psicomotricidade e cognição da criança, reconhecimento da diversidade cultural presente nas danças, diferenciação de elementos constituintes como passo, movimento ritmado e construção coreográfica.

Numa aula para crianças de 5 anos pode-se experimentar o ensino lúdico a partir da dança como manifestação cultural de um povo e/ou região; contribuir na construção de um texto / colagens de forma coletiva reforçando e ajudando a refletir sua funcionalidade social, servindo de base para um posterior pensamento crítico; assim como descriminalizar a cultura periférica, que segundo Nascimento (2011) "...é um conjunto simbólico próprio dos membros das camadas populares, que habitam em bairros periféricos; quanto a produtos e movimento artístico – cultural por eles protagonizado. Junção do modo de vida, comportamentos coletivos, valores, práticas, linguagens e vestimentas". Ou seja, valoriza, a partir de sua difusão e estudo, a cultura de comunidades marginalizadas pelas elites e possibilita a sensação de pertencimento destas comunidades ao não fecharmos os olhos para suas realidades e manifestações artísticas.
Com isso, não estou aqui dizendo que devemos ser alheios e permissivos quanto a erotização / sexualização infantil e objetivação do corpo da mulher através da música, como assim, também, é feito em outros estilos musicais, mas, sim, que tracemos linhas bem definidas, e não hipócritas, sobre a carga de preconceito depositada nas diversas manifestações artísticas, como também entre a erotização / sexualização infantil (sem deixar de abordar com naturalidade e inteligência a sexualidade, para melhor compreensão do tema) e objetivação do corpo da mulher e/ou seu empoderamento através do enfoque da liberdade sexual feminina. Fechar os olhos para cultura periférica, para o banho, bronze e churrasco na lage, para pluralidade de hábitos e manifestações artísticas que ocorrem nesse campo fértil que são as periferias, e dentre estas manifestações está o próprio Funk, é, além de negar a existência e importância dessas comunidades, criminalizando-as, fechar as portas para buscas de novos caminhos de diálogo e de metodologias de ensino que envolvam todos os atores da sociedade.

O Samba, que por muitas décadas, não era aceito pela elite cultural, sofreu preconceito e repressão policial, não tendo também espaço em emissoras de rádio e TV, e hoje, assim como antes, na voz de Zeca Pagodinho, é narrado como o samba do pandeiro, da cachaça,...e que na sua música É de black-tie retrata o samba do "gingado da bela mulata que é moça...já está na hora de transar", e mesmo assim é bem quisto.
O Frevo, originado nas ruas do Recife nos fins do século XIX como um símbolo de resistência popular contra a dominância da elite intelectual e econômica pernambucana, e com seu teor sensual, também teve seus dias de perseguição. A retratação do carnaval Recifense, através do Frevo, segundo Teotônio Freire, era como uma “espécie de orgia”, de “loucura descabelada”, sendo permissivo e subvertendo as moralidades cotidianas, as vergonhas, os usos dos corpos, transgredindo os bons costumes controladores da vida sexual:

[...] grupos, clubes, sociedades, sambas, maracatus, profusão de fitas, de rendas, de pandeiretas, castanholas soando, ventarolas abertas, cabelos revoltos, cintilações de olhares, maneios de ancas polposas sob fofas de cetim, arcarias de canela, coretos de músicas, postes com flâmulas galhardetes, carros de rodas enfeitadas a flores carregando famílias; serpentinas enroladas e enoveladas em pescoços alvos, confeitos pairando no espaço, entrando pelos colarinhos, pelos peitilhos, pelos decotes dos vestidos; pó de arroz recendendo ylang-ylang ou jasmim, ondulando no ar, entrando nas narinas, estonteando, embebedando; bisnagas de colônia e Ixora, de Rita Sangalli e Vitória, tudo doidamente misturado, numa espécie de orgia, de loucura descabelada, um atabalhoamento descomunal. (FEIRE, 1991, p. 127)
A alguns anos atrás a Música “Pare de Tomar a Pílula”, de Odair José, por exemplo, foi considerada imoral, artigo contra os bons costumes e proibida no seio de muitas famílias brasileiras, principalmente na presença de crianças e jovens, mas, sair da caixa foi e é mais do que necessário!
Vê-se assim, então, que a aceitação da cultura periférica requer trabalho, maturidade e tempo. Requer enxergar, mais do que ver. Saber, com respeito, triar. O conservadorismo na educação é desconstruído gradativamente a luz do conhecimento, da vivência, do permitir-se! Como falado anteriormente, "tudo depende de como é abordado". Proporcionar isso é dever de um educador, de uma Escola. Xavier (1992), mesmo, disse:
“(...) de um lado está a escola tradicional, aquela que dirige que modela, que é ‘comprometida’; de outro está a escola nova, a verdadeira escola, a que não dirige, mas abre ao humano todas as suas possibilidades de ser. É portanto, ‘descompromissada’. É o produzir contra o deixar ser; é a escola escravizadora contra a escola libertadora; é o compromisso dos tradicionais que deve ceder lugar à neutralidade dos jovens educadores esclarecidos",
Vídeo Clipe: REPOSTA AO FUNK OSTENTAÇÃO (Edu Krieger)
Referências:
Blogue Na Mira do Groove. A HISTÓRIA DE JAMES BROWN. FERREIRA, Tiago. Disponível em: < http://namiradogroove.com.br/blog/videos/video-historia-de-james-brown > . Acessado em: 18 de fevereiro de 2018.
Blogue Perspectivismos. O FUNK TAMBÉM É CULTURA. LIMAS, Raphaelle. Disponível em: < https://perspectivismos.wordpress.com/2013/10/31/o-funk-tambem-e-cultura/ > . Acessado em: 18 de fevereiro de 2018.
CULTURA PERIFÉRICA, A VOZ DA PERIFERIA. SILVA, Juliana do Carmo. CELACC / ECA - USP.
Blogue Mundo Estranho. COMO SURGIU O FUNK? TAVARES, Pedro Henrique. Disponível em: < https://mundoestranho.abril.com.br/cultura/como-surgiu-o-funk/ > . Acessado em: 18 de fevereiro de 2018.
FREVO E SAMBA: PUREZA E PERIGO NO CARNAVAL DO RECIFE. NETO, Hugo Menezes. UFPA.
Trilha Sonora:
REPOSTA AO FUNK OSTENTAÇÃO. Edu Krieger.

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